Postagem

Intervalo esquisito

– O de casa! (palmas)    O comadre…….  Vão trocá um dedim de prosa?  Tô aperreada, vamo passar um café…

– Que houve comadre?

– Hoje um acendedor de sorrisos se apagou, partiu.  E com ele foi se foi um bocado de generosidade e alegria… E ainda tem mais: o emprego de um monte de gente que trabalhava com ele morreu também.

– E agora comadre?

– Ainda tem mais….

– Mais o quê?

– Soube de duas moças bonitas da cidade que têm o sol nos olhos

– Ah então é uma boa notícia, graças a Deus!

– É nada!

– Uai, e por causa de que num é?

– Elas têm um bicho que põe uns ovos dentro delas, um tal bicho câncer.

– Como é isso?

– Cada filhote que nasce se esconde num lugar diferente dentro delas.

– E esses bichos passam a vida brincando com elas?

– Que nada! Diz que é igual praga, carece de veneno forte para matar. E esses desgramados causam muita dor

– E como essas moças conseguem trazer o sol nos olhos se eles se enchem de lágrimas por causa da dor?

– Também num entendo muito bem, mas parece que são evoluídas…

– Evoluída tipo um anjo?

– Claro que não! Se fosse anjo estaria voando no céu.

– Será que os anjos são as pessoas que já morrerem e foram para lá?

– Mas que ideia! E os cabras ruins que abusam das muié vão virar anjos depois que morrem?

– Esses devem ir para o inferno!

– Cruz credo!

– Comadre o patrão tá chegando, quem sabe se com os estudos e clareamento dos pensamentos ele pode explicar sobre isso.

– Quando ele tiver lendo jornal na rede, como sempre faz, vou preguntá…

 

– Ô dotor, que tanto o senhor lê nesse jornal todo dia?

– Preciso me atualizar das coisas que acontecem no mundo, é importante saber…

– E acontece alguma coisa todo dia?

– Sim, claro. As pessoas fazem coisas todos os dias, o jornal fala das coisas que as pessoas fazem

– Ahhhhh Meu Deus!  Será que sabem do que eu faço também?

– Não Sebastiana, eles sabem que existem pessoas que vivem como você, mas não do que acontece em cada dia seu.  Eles escrevem sobre o que é significante.

– Ah, então deveriam escrever sobre a simpatia que faço com café para não dá praga na horta. Misturo o pó de café usado com uma raiz que é tiro e queda, nenhum pulgão se aproxima; Isso é importante né?

– Pra eles não é não Sebastiana, diz respeito só a sua vida! Eles buscam assunto de interesse geral.

– E o que tem escrito aí hoje?

– Muitas notícias sobre o Vírus, o número de pessoas que foram contagiadas e morreram, fala de um acidente com um caminhão nessa estrada perto daqui…

– Só isso?

– Não. Fala também de um crime horroroso que aconteceu numa creche, onde morreu a professora e duas crianças

– E o que mais?

– Fala dos políticos, do que eles estão fazendo, das falcatruas que um descobre do outro e do jogo de poder que existe nisso

– Jogo de poder…

– Que cara é essa Sebastiana, no que você está pensando?

– O senhor disse que o jornal fala de assunto de interesse geral. As pessoas só se interessam pela morte das outras pessoas e também da alegria?

– Oi?

– Quem disse que as pessoas preferem saber disso do que saber das verduras que nascem bonitas e sem pulgão? Será que se tivesse a foto de uma flor que nasce todo dia, ou de um bezerro ficando de pé pela primeira vez não seria mais atrativo? Ou de um casamento…

– Não é assim que funciona o sistema Sebastiana

– E o que é o sistema?

– É como uma rede de conexão que liga pessoas com atividades profissionais diferentes, que vendem seus serviços entre si, e ganham dinheiro com isso.

– E fazem o que com o dinheiro?

– Vivem

– E vivem buscando a morte?

– Não! Ninguém quer morrer, a maioria até tem medo da morte.

– Dotor, o que é a morte?

– É quando a vida acaba

– E o que é a vida?

– É o que acontece entre o nascimento e a morte

– É um intervalo?

– Podemos dizer que sim

– E esse intervalo só serve para se preparar para morte?

– Não! Na verdade, a gente até deveria aprender a fazer isso, mas temos medo da morte.

– Dotor eu num gosto de rato, tenho asco desses bichos.  Se eu ficasse cassando rato todo dia eu ia viver com asco.  Se as pessoas tem medo da morte e buscam ela todo dia no jornal, elas vivem com medo… Que estranho!

– Faz sentido Sebastiana.

– Eu num tenho estudo dotor, mas acho meu intervalo melhor hein! Rsrs

Eu tenho mais uma dúvida dotor: a gente vira anjo quando morre?

– Claro que não!

– E vira o que?

– Defunto, vai para debaixo da terra e depois os bichos comem, só sobra o esqueleto.

– Ahhh, só sobra a parte dura…. Então é por isso!

– Isso o que?

– Esse tal de sistema é o esqueleto de tudo, é o grande interessado no que é duro, por isso endurece o coração dos homens.

– Que ideia é essa Sebastiana?

– Deixa pra lá!  Meu interesse é mesmo pela vida, pelo que nasce, mesmo que não tenha esqueleto.  Eu vou continuar buscando saber sobre o anjo, porque pelo menos ele me faz olhar na direção do céu. Num sô avestruz…    Tchau dotor!

Alessandra Melo

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