Sou de um tempo em que as crianças corriam e se escondiam juntas, brincavam de pique e conheciam pera, uva, maçã e até salada mista produzidas em esconderijos além do pomar. O barulho das outras crianças na rua era como pólvora explodindo o desejo do encontro, aguçando imaginação e artes.
Sou do tempo em que os amassos no elevador ou no carro deixavam as despedidas mais gostosas e os namorados não eram reprimidos por câmeras indiscretas a serviço do enquadramento.
Sou do tempo em que dançávamos espontaneamente nas festas e discotecas e não precisávamos pré conhecer os passos que riscariam o salão de baile, porque o que importava era diversão, o que valia mesmo era sorrir com o coração, ainda que rindo de si mesmo.
Sou do tempo em que os adolescentes se apaixonavam mais do que deprimiam, que os jovens tinham mais sonhos que ansiedade.
Sou do tempo em que buscávamos quebrar as caixinhas de enquadramentos, a liberdade e independência era a meta da juventude, desejávamos a quebra dos rótulos, das contenções, das repressões. Sou do tempo do sonho que aquecia corações, que alegrava os encontros, que motivava os movimentos.
Sou de um tempo em que as pessoas não eram localizadas por dispositivos eletrônicos, não eram controladas pelos registros de presença nas redes, nem se sentiam pressionadas pela urgência de resposta a qualquer mensagem, independente da relevância do assunto.
Sou do tempo em que a presença era essencial e nos encontros cabia o abraço ou o aperto de mão que representavam respeito e afeto, não era sinônimo de contágio.
Sou do tempo que os diários eram confidentes de histórias carregadas de mistérios instigantes; seus registros não eram fotos do prato de comida do dia ou de passeios dispersos de presença pela intenção de produzir publicações. Aquelas páginas inventariavam os flertes, as frustrações, as emoções, as expectativas, os sonhos, proibições e segredos.
Sou do tempo que as histórias inspiravam pelo seu conteúdo, sem precisar de uma quantidade de seguidores como aval. Os amigos não eram números em aplicativos, mas pessoas que se dedicavam umas às outras, que sabiam a importância de cuidar das relações.
Sou do tempo do interesse manifestado nos olhares que se cruzavam espontaneamente, no sorriso de canto da boca, na pele que respondia a uma fala mais de perto e convidava a descobrir o outro sem seleção prévia no app de relacionamentos.
Sou do tempo… Será? Pertenço ao tempo? A algum tempo? A todos os tempos? Sou eu quem o tem ou ele a mim? Sou? Quem? Tenho? O que? Quem define, senão a mente? Tenho eu a ela ou ela me tem? O que ela tem? O Tempo? A mim? E o que faz conosco?
Presencio o tempo da mente, daquela que mente e afugenta o único tempo do ser: o agora.
Presencio o tempo da morte da fagulha de vida, o tempo que apaga o fogo que faz desejar, que faz amar e acreditar.
Vejo o tempo que mantém as labaredas da ansiedade e convida à não vida, à ausência. De si, dos encontros, do sentido de existir.
Psiu! Sobrevivente…. Psiu!
Cuidado com o tempo da mente!
Cuidado com o tempo da espera ansiosa, da desesperançosa também! Sai do tempo que julga, que que não acolhe o desejo, que aprisiona o coração, que paralisa a ação!
Psiu! Sobreviventeeee! Se liberte!
Acerte menos e viva mais! Brinque com sua criança, balance sem saber o passo, deixe um olhar te capturar, aceite as surpresas da vida como ponte para chegar onde precisa, ainda que você não saiba o destino. Confia! Em você, no teu fluxo, na tua construção. Abrace suas imperfeições e torne leve suas impotências, elas sempre existirão e podem ser suas mestras do caminho.
O tempo é a própria existência ensinando a arte da desconstrução e reconstrução. Existir é ser construtor do seu templo-tempo, não te distraias de ti!
Alessandra Melo